Sumiço de poeta sem-teto comove moradores do Alto de Pinheiros

O caseiro Roberto Oliveira, 36, cumpria o mesmo ritual todos os dias: enchia uma garrafa d’água e levava a um morador de rua fixado a alguns metros de seu trabalho, no canteiro central da rua Pedroso de Morais, no Alto de Pinheiros (zona oeste de São Paulo). Às vezes ele conversava com o senhor curvado que se vestia com sacos plásticos e escrevia poemas em pedaços de papel sulfite.

A tarde do último 23 de abril foi diferente. A cobertura de lona com a qual costumava se proteger da chuva, além das panelas e pilhas de papel não estavam na praça. “Foi um segurança da rua que me falou: ‘Levaram o seu Raimundo embora'”, conta Oliveira, que há 16 anos trabalha em duas casas no bairro de classe média alta da zona oeste.

Raimundo Arruda Sobrinho, 73 anos estimados, tinha sido encaminhado para acompanhamento médico e psicológico no Caps (Centro de Atendimento Psicossocial) do Itaim Bibi, depois de ter morado naquela mesmo canteiro por cerca de 18 anos. Quem intermediou o tratamento foi a publicitária Shalla Monteiro, 36, que o conhecia há um ano.

“Fiquei extasiada com ele escrevendo no meio da avenida, naquele silêncio meditativo”, diz a moradora do bairro, que criou uma conta no Facebook em agosto para postar fotos e textos escritos por Raimundo. Antes do tratamento, a página na rede social tinha 300 fãs, segundo os cálculos de Shalla; hoje são quase 18 mil.

Foi por meio do grupo virtual que o irmão, Francisco Arruda, 56, o localizou, em setembro. “Fui buscá-lo em São Paulo imediatamente, mas ele disse que as vozes não o deixavam sair de lá”, conta o engenheiro, que mora em Goiânia.

Raimundo nasceu em Goiatins (Tocantins), mas veio completar os estudos em São Paulo quando Francisco ainda era um bebê, em 1956.

“A última carta que ele mandou para nós foi em 62”, afirma Arruda. Em meados dos anos 80, Raimundo foi encontrado graças a um programa de televisão e passou 20 dias com a família, em Goiás. “Depois sumiu de novo. Ficamos sabendo que vendia livros no viaduto do Chá, mas que as faculdades mentais dele pioraram e ele tinha ido parar na rua.”

PATRIMÔNIO HISTÓRICO

Para conseguir o encaminhamento ao centro de saúde -o escritor do Alto de Pinheiros sempre recusou qualquer tipo de tratamento-, a família teve de pedir a intervenção do Ministério Público do Estado. Mas encontrou dificuldades no começo. “Na primeira vez que fomos lá, a pessoa do atendimento disse que não poderia fazer nada porque ele era patrimônio histórico de São Paulo”, diz Josangela Roberta, 30, mulher de Francisco.

Naquela segunda-feira de abril, após intervenção da Promotoria, funcionários do Caps foram à praça com uma ambulância. Segundo relatos, Raimundo não ofereceu resistência. O Caps não liberou a visita da reportagem.

“Ele ainda se veste com o plástico e não deixou cortarem o cabelo, mas já está se alimentando bem”, diz Josangela. O Caps não autorizou a visita da reportagem e também não quis se pronunciar sobre o caso.





O irmão pretende levá-lo para a capital goiana em breve. Ainda não há precisão de quando Raimundo será liberado do centro de saúde. “Aqui tem um quartinho para ele, médicos para fazer acompanhamento, tudo para ele ter um final de vida decente”, diz.

Segundo o psicanalista e acompanhante terapêutico Flávio Veríssimo, o retorno à vida familiar deve ser difícil.. “Há muito tempo que ele não sabe o que é viver com uma família. Se não tiver suporte dos parentes e de uma equipe de saúde, é possível que ele volte para a rua”, afirma.

“O CONDICIONADO”

O poeta sem-teto era famoso no bairro. Costumava registrar em um diário os números de série dos escritos que entregava a quem o visitasse e assiná-los com o seu pseudônimo: ‘O Condicionado’. “Porque ele se dizia condicionado pela escravidão social e pela psiquiatria”, explica Shalla.

Segundo ela, Raimundo conta já ter sido internado em uma instituição psiquiátrica em 1976, mas não dá detalhes sobre o que passou por lá. O tema da psiquiatria é citado em seus textos.

“Parecia que eu não tinha inteligência para os papos dele”, diz Thalita Gregorato, 21, assistente de artista plástico que trabalha numa casa próxima à praça. “Acho que ele era um cara meio revoltado com o sistema, contra pagar imposto”, arrisca.

Dificilmente aceitava comida, segundo os relatos. “Tinha medo de ser envenenado”, afirma o caseiro José Paulo Barbosa, 49, sentado numa cadeira na calçada enquanto mira o local que costumava abrigar o autor. “Ele falava que estava imantado na praça”, diz a copeira Maria Regina do Nascimento. “Tinha gente que parava lá para pedir conselho.”

Raimundo aparece até mesmo nas imagens do Google Street View -ferramenta de visualização das ruas da cidade-, indiferente aos carros que cruzam os dois sentidos da via movimentada. “Tanta gente conhecia o poeta aqui. Podiam colocar o nome dele naquela praça”, opina a copeira Regina.

Segundo o cineasta Evaldo Mocarzel, diretor de “À Margem da Imagem” (2003), premiado documentário que retratou mendigos em São Paulo, Raimundo foi o personagem que mais trouxe dificuldades ao filme. “Era o único caso que não tinha ido parar na rua por alcoolismo, desemprego ou desagregação familiar. Tinha um raciocínio muito difícil.”

No longa, o sem-teto se descreve como “uma peça no tabuleiro internacional da política” e diz estar revoltado por não encontrar quem tenha cultura para dialogar com ele. “Parece que estou num pedestal intelectual acima das nuvens”, reclama.

Fonte: Folha.com





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